Por Franklin Ferreira
Fonte: http://voltemosaoevangelho.com/blog/2013/06/igreja-e-estado-franklin-ferreira-12/
Deus estabelece na criação várias
instituições para a ordem social, cada qual com sua própria esfera de
atividade e missão, e responsável por algo diante dele. Mas, antes de
considerarmos a posição reformada sobre a relação da igreja com o
estado, será útil compará-la com outros modelos políticos e teológicos
rivais.
Ao tratar-se de modelos políticos,
fala-se de espectro político, que é o conjunto de posições políticas
representadas em um país ou localidade. A classificação das correntes
políticas geralmente se faz através da sua localização em um ou mais
eixos, cada um representando um aspecto da política. Isso é representado
pelo diagrama abaixo, que mostra onde está situada uma pessoa, um
partido político ou um governo no que diz respeito à sua ideologia
política.[39]

Um primeiro modelo político é
apresentado no gráfico abaixo, que ilustra as ênfases estatizantes e
intervencionistas associadas à posição esquerdista, como no comunismo e
no nazismo. Nesse modelo, há pouca ou nenhuma liberdade pessoal e
nenhuma liberdade econômica. O estado ou partido ganha uma dimensão
transcendente, agindo para estender seu domínio ideológico sobre todas
as esferas da sociedade:

O estatismo é o cerne do esquerdismo,
não a mera ausência de eleições livres e “democracia”. Portanto, em
última instância, tanto o comunismo como o nazismo são socialismos,
sendo o primeiro um socialismo de classe e internacional, e o segundo um
socialismo étnico e nacionalista.[40]
Um segundo modelo é ilustrado no gráfico
abaixo, que resume os ideários políticos associados à posição
direitista, em que se privilegia a liberdade pessoal e econômica, e a
garantia dos direitos individuais, sendo os limites o respeito à vida, à
propriedade e à liberdade dos demais:

Os dois primeiros gráficos delineiam os dois principais lados em disputa no espectro político, especial
mente desde antes da II Guerra Mundial,
mas que se tornaram proeminentes no Pós-Guerra. Obviamente, há várias
gradações partidárias entre a esquerda e a direita. À esquerda podem ser
associados o comunismo, o socialismo e o nazismo. A centro-esquerda, a
social-democracia, também conhecida como a “terceira via”, e a
centro-direita são consideradas de centro. O conservadorismo, o
liberalismo econômico — que defende a liberdade de mercado e uma
restrição à intervenção estatal sobre a economia — e o libertarianismo
são associados à direita. Como ficará mais claro abaixo, nenhuma dessas
correntes políticas pode ser associada à posição reformada, baseada na
Escritura.
O gráfico abaixo ilustra as percepções
de cristãos influenciados pelo fundamentalismo americano, que se tornou
um dos principais modelos de relação com a sociedade entre os
evangélicos no século XX. A partir desse modelo, defendia-se não somente
uma separação do Estado, mas também uma separação de outras esferas da
criação, percebendo-as como essencialmente pecaminosas e impedidas de
qualquer possibilidade de redenção:

Como visto anteriormente, a visão
reformada da sociedade não se centraliza no indivíduo nem na
instituição, mas na soberania de Deus sobre as esferas da criação, nas
quais diferentes instituições estão debaixo do reinado de Deus. Essa
posição destaca que “todos os homens vivem numa rede de relacionamentos
divinamente ordenada.” Nesse sentido, “as pessoas não encontram sentido
ou propósito quer em sua própria individualidade, quer como parte de um
todo coletivo.” Na verdade, “elas atendem a seus chamados dentro de uma
pluralidade de associações comunais, como família, escola e Estado”,
portanto “Deus ordenou cada uma dessas esferas de atividade como parte
da ordem original. Juntas, elas constituem a comunidade da vida.”[41]
O gráfico a seguir esboça essa posição:

Nessa posição, a família, o indivíduo e a
igreja são esferas independentes, pois existem a despeito do Estado,
derivando sua autoridade somente de Deus. O papel do Estado é mediador,
intervindo quando as diferentes esferas entram em conflito entre si ou
para defender os fracos contra abusos de poder.
Como visto anteriormente, a visão
reformada da sociedade não se centraliza no indivíduo nem na
instituição, mas na soberania de Deus sobre as esferas da criação, nas
quais diferentes instituições estão debaixo do reinado de Deus. Essa
posição destaca que “todos os homens vivem numa rede de relacionamentos
divinamente ordenada.” Nesse sentido, “as pessoas não encontram sentido
ou propósito quer em sua própria individualidade, quer como parte de um
todo coletivo.” Na verdade, “elas atendem a seus chamados dentro de uma
pluralidade de associações comunais, como família, escola e Estado”,
portanto “Deus ordenou cada uma dessas esferas de atividade como parte
da ordem original. Juntas, elas constituem a comunidade da vida.”[41]
O gráfico a seguir esboça essa posição:

Nessa posição, a família, o indivíduo e a
igreja são esferas independentes, pois existem a despeito do Estado,
derivando sua autoridade somente de Deus. O papel do Estado é mediador,
intervindo quando as diferentes esferas entram em conflito entre si ou
para defender os fracos contra abusos de poder.
Abaixo, é oferecido um desenvolvimento
dessa posição por meio de algumas premissas que podem guiar o
entendimento evangélico da relação entre o cristão e a política:[42]
Em primeiro lugar,
afirma-se a distinção entre igreja e Estado, lembrando que toda
autoridade procede de Deus. As tarefas da igreja e do Estado são de dois
tipos e são distintas, não podendo ser confundidas. A existência do
Estado deve ser reconhecida como um dom e uma ordem de Deus,
estabelecida a partir da Queda, por causa do pecado (1Sm 12.17-25;
24.7,11; 26.9-11; 2Sm 1.14-16; Rm 13.1-5; 1Pe 2.13; Ap 13.10). Portanto,
os que assumem cargos públicos devem reconhecer que sua autoridade é
delegada. O governo estabelecido por Deus é mediado pelo povo, que elege
seus governantes. Estes são eleitos para servir ao povo, ao mesmo tempo
que cumprem suas tarefas com senso de dever, pois sabem que darão
contas de seus atos perante uma autoridade maior.
Em segundo lugar,
rejeita-se o conceito de soberania absoluta do Estado e o conceito de
soberania absoluta do povo. Para a fé cristã, o poder reside em Deus e
em Cristo, que é o Senhor de todo poder e autoridade (Ef 1.21,22) e “o
soberano dos reis da terra” (Ap 1.5; 19.16), comandando todas as esferas
sociais. Somente
Deus detém o poder absoluto: “Porque o
SENHOR é o nosso juiz; o SENHOR é o nosso legislador; o SENHOR é o
nosso rei; ele nos salvará” (Is 33.22). Portanto, Deus é a fonte final
da lei e de toda autoridade. Logo, prestar fidelidade ou lealdade
absoluta ao Estado é idolatria, pois é Deus quem estabelece o certo por
meio de sua lei, portanto deve-se compartilhar a lei de Deus por meio da
mudança das estruturas sociais. Por isso que, na mesma medida em que as
leis estabelecidas numa nação devem ser derivadas da lei de Deus, essas
leis devem ser aplicadas a todas as pessoas, incluindo os governantes.
Mesmo numa nação que não é cristã, pode-se apelar à lei de Deus escrita
na criação e gravada na consciência dos seres humanos, que é coincidente
com a lei revelada. Portanto, numa nação, não há ninguém que esteja
acima da lei. Esse é o princípio da lex rex (a lei é o rei), que se opõe ao princípio despótico da rex lex (o rei é a lei).
Em terceiro lugar, Deus
delega poder tanto ao governante quanto às pessoas. Ao ocupar um cargo
de autoridade, nenhum homem tem poder sobre outro, a não ser quando essa
capacidade é delegada por Deus. Mas esse poder é relativo e revogável.
Por isso, os cristãos devem opor-se a todo sistema político totalitário.
Mais do que um direito, isto é um dever: “É mais importante obedecer a
Deus que aos homens” (At 5.29). A fé cristã honra as autoridades, embora
negue ao Estado o direito de intervir em matérias de culto, doutrina e
ética. O exercício da autoridade é necessário, mas jamais ao custo da
liberdade de consciência, pois somente Deus é o único Senhor. Já que o
poder não é algo intrínseco ao governante, mas delegado por Deus, os
cristãos devem resistir, pelos meios corretos e legítimos, a quem exerce
o poder político contra a vontade de Deus. Para a tradição reformada, o
governo é governo legítimo quando e na medida em que é servo de Deus.
Assim, não devemos identificar um governo, de forma direta e
automática, com a vontade de Deus.[43] Nesse sentido, a resistência ao
Estado que faça mau uso do poder que lhe foi delegado deve ser entendida
como desobediência civil.[44] Desde que exercido dentro de limites
aceitáveis, esse é um mecanismo legítimo a que tem direito todo cidadão
e, de forma específica, todo cristão, quando em confronto com um Estado
totalitário que interfere na esfera litúrgica, doutrinária ou ética, e
requer para si o que equivale à adoração. Portanto, a “rebelião contra
os tiranos é obediência a Deus” (Rebellion to tyrants is obedience to God).
Em quarto lugar, nenhuma ideologia é absoluta e nem pode ser confundida com o evangelho. Com acerto, a Declaração Teológica de Barmen afirma:
“[8.18] Rejeitamos a falsa doutrina de que à Igreja seria permitido
substituir a forma da sua mensagem e organização, a seu bel-prazer ou de
acordo com as respectivas convicções ideológicas e políticas
reinantes.” Sempre que a igreja identifica determinada ideologia com o
reino de Deus ou com a mensagem bíblica, essa mensagem não apenas foi
distorcida, como também acabou sendo obliterada. Por outro lado, a
igreja deve manter vigilância sobre o Estado. Não se pretende com isso
substituir o sermão baseado na Escritura pelo discurso político.
Adorar a Deus, proclamar sua Palavra e ministrar os sacramentos é a
principal tarefa da igreja, além da qual não existe outra. Ao proclamar
com fidelidade a Palavra de Deus, a igreja influencia o Estado, fazendo
com que suas leis se conformem com a vontade de Deus. De tal fidelidade
decorrem consequências políticas e sociais ao chamado primário da
comunidade cristã.
Em quinto lugar, o
realismo cristão ressalta que a corrupção na política tem origem
primariamente no coração dos seres humanos. Se a doutrina da
criação afirma a dignidade humana, o ensino bíblico sobre a queda afirma
a corrupção humana. Os pecados individuais se tornam pecados
estruturais, tais como idolatria, egoísmo, violência, despotismo,
corrupção; estes acabam por afetar as estruturas do poder constituído.
Por isso, a igreja cristã “prega uma conversão interior dos governantes e
dos governados a Deus”, crendo que, a partir do arrependimento
e quebrantamento pessoal, as estruturas serão limpas de iniquidades. Por
outro lado, a revelação geral e a graça comum ensinam que “há
princípios que, se aplicados, produzirão a ética na política.” Essas são
as doutrinas que proporcionam a base dos valores éticos em pessoas que
não são cristãs. Portanto, “o caminho para a ética na política” não
passa pela conversão de todos ao cristianismo, nem consiste “em colocar
em cargos políticos quem se professa cristão”, mas em “contribuir para
que a lei de Deus seja reconhecida” por todos.[45] Por isso, podemos
cooperar com incrédulos como cobeligerantes na esfera política, lutando
contra males aos quais também nos opomos.
Em sexto lugar, por
causa do pecado na sociedade, a república se torna não apenas o melhor
sistema, mas o sistema mais viável. A forma de governo que mais se
aproxima do modelo bíblico é a república, na qual a nação é
governada pela lei constitucional e administrada por representantes
eleitos pelo povo. Porque somente Deus concentra em si todo o poder (cf.
Is 33.22), deve haver a divisão e a separação dos poderes executivo,
legislativo e judiciário, de modo que nenhum governo ou ramo do governo
monopolize o poder. Assim, a república se torna o melhor sistema, pois é
a salvaguarda das liberdades individuais, “designada para fragmentar o
poder político, de modo que ele não possa ameaçar as vidas, liberdades e
propriedades.”[46] Portanto, devido à inclinação humana para a
injustiça, advinda do pecado, a república torna-se necessária; e devido à
inclinação humana para a justiça, capacitada pela graça comum, a
república torna-se possível.
Portanto, os cristãos defendem os
fatores que definem uma república, que são aqui esboçados e que podem
ser deduzidos ou inferidos da Escritura:
- ênfase nas funções primordiais do Estado, em que os governantes têm a obrigação de zelar pela segurança do povo, afinal, pagamos impostos por ela (cf. Rm 13.1-7);
- limitação da extensão e do poder do Estado, pois, a partir das Escrituras, entende-se que o governo não tem autoridade para estabelecer impostos exorbitantes, redistribuir propriedades ou renda, criar zonas francas ou confiscar depósitos bancários;
- separação e cruzamento fiscalizador (checks and balances) entre os poderes executivo, legislativo e judiciário, para que nenhum poder possua poderes absolutos, e para que sempre haja equilíbrio;
- oportunidades de ascensão social para todas as pessoas, investindo e promovendo educação e serviços médicos;
- promoção de uma ética protestante do trabalho, pois “o que Max Weber chama de trabalho ético protestante é um conjunto de virtudes econômicas [bíblicas]: honestidade, pontualidade, diligência, obediência ao quarto mandamento — ‘seis dias trabalharás’, obediência ao oitavo mandamento — ‘não furtarás’, e obediência ao décimo mandamento — ‘não cobiçarás’”, reconhecendo que a ênfase no “trabalho produtivo origina-se da Bíblia e da Reforma”;[47]
- direito à propriedade privada como direito fundamental (cf. Êx 20.15,17; 1Rs 21);[48]
- alternância do poder civil, que impede que um partido ou autoridade se perpetue no poder, assim como a defesa do pluralismo político e partidário;
- centralidade do contrato social, que é um acordo entre os membros de uma sociedade pelo qual reconhecem a autoridade sobre todos de um conjunto de regras; a constituição, que limita o poder, organiza o Estado e define direitos e garantias fundamentais;
- garantia das liberdades individuais, por meio do estabelecimento de normas gerais de conduta, que redundem em liberdade de expressão, associação e de imprensa;
- voto distrital para o poder legislativo, em que o país ou o estado é dividido em distritos eleitorais com aproximadamente a mesma população; cada distrito elege um deputado e, assim, completam-se as vagas no parlamento e nas câmaras estaduais.
Esses são o conjunto de princípios que a
tradição reformada tem afirmado ao tratar da relação dos fiéis e da
comunidade cristã com o Estado. Que, à luz desse ensino, os cristãos
orem e intercedam pelos governantes, “para que tenhamos uma vida
tranquila e serena, em toda piedade e honestidade” (1Tm 2.1-3).
_____________________
39. Gráficos adaptados de Greg Johnson, O mundo de acordo com Deus. São Paulo, Vida, 2006, p. 93,94 (usados com permissão da Editora Vida), Espectro político, http://pt.wikipedia.org/wiki/Espectro_político e “Espectropolítico”, O capitalista: vida, liberdade, propriedade, htttp://www.ocapitalista.com/2007/12/espectro-poltico.html, acessados em 27 de abril de 2010.
40. Para uma introdução à conceituação da esquerda aqui adotada, cf., por exemplo, Alain Besançon, A infelicidade do século. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2000, Jonah Goldberg, Fascismo de esquerda. Rio de Janeiro, Record, 2009 e Czeslaw Milosz, Mente cativa.
São Paulo, Novo Século, 2010. Para uma crítica ao marxismo e ao nazismo
como cosmovisões rivais da fé cristã, cf., por exemplo, Alister
McGrath, Apologética cristã no século XXI. São Paulo, Vida, 2008, p. 272-279 e Franklin Ferreira, “A Igreja Confessional Alemã e a ‘Disputa pela Igreja’ (1933-1937)”, Fides Reformata, v. 15, n. 1 (2010), p. 9-36. Cf. também os textos de Thomas Schirrmacher: “Four Problems with Germany’s Re-unification”, Contra Mundum, http://www.contra-mundum.org/schirrmacher/probreun.html, “The Myth of the End of Communism”, Contra Mundum, http://www.contra-mundum.org/schirrmacher/mythcomm.html e “National Socialism as Religion”, Chalcedon Report 1992, http://ww.contra-mundum.org/schirrmacher/NS_Religion.pdf.
41. Gordon Spykman, “The principled pluralistic position”, em Gary Scott Smith (ed.), God and Politics: Four
Views on the Reformation of Civil Government. Phillipsburg, NJ,
Presbyterian and Reformed, 1989, p. 79, citado em Greg Johnson, O mundo de acordo com Deus, p. 93.
42. Pontos básicos extraídos de: Augustus Nicodemus Lopes, Ética na política e a universidade: Carta
de princípios 2006. São Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie,
2006; Eberhard Busch, “Igreja e política na tradição reformada”, em
Donald McKim (ed.), Grandes temas da tradição reformada, p. 160-175; “Um manifesto cristão”, em Francis Schaeffer, A igreja no século 21. São Paulo, Cultura Cristã, 2010, p. 157-239; André Biéler, A força oculta do protestantismo. São Paulo, Cultura Cristã, 1999; Abraham Kuyper, Calvinismo. São Paulo, Cultura Cristã, 2002, p. 85-115; Greg Johnson, O mundo de acordo com Deus, p. 92-101; Johannes Althusius, Política. Rio de Janeiro, TopBooks, 2003; David W. Hall, The Genevan Reformation and the American Founding. Lanham, MD, Lexington, 2005.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Prezados, sintam-se a vontade para postar seus comentários.